TCE acusa gestão Melo de desviar R$ 150 milhões da habitação para cobrir déficit municipal
Tribunal realizou auditoria para investigar denúncias de irregularidades na extinção de alguns fundos municipais
A auditoria do TCE-RS foi motivada por uma representação apresentada ao Ministério Público de Contas (MPC) pelo Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade de Porto Alegre (FMCC), que denunciou supostas irregularidades na extinção de alguns fundos municipais e reversão de até 90% dos saldos de fundos vigentes para o Fundo de Reforma e Desenvolvimento Municipal (FDRM), criado pela Lei Complementar municipal – LC nº 869/2019 justamente para receber recursos de fundos extintos. Pela lei, os recursos do FDRM devem ser usados para o pagamento das seguintes despesas: sentenças judiciais, tais como Precatórios e Requisições de Pequeno Valor (RPVs); Dívida Pública Consolidada; Cobertura do Déficit Previdenciário do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS); investimentos em Infraestrutura, Mobilidade Urbana e Sustentabilidade Ambiental; estudos, projetos e pesquisas de desenvolvimento sustentável, econômico, social e urbano; aquelas destinadas à recuperação de bens culturais reconhecidos por lei; e aquelas destinadas a aquisições e desapropriações necessárias para a implantação de obras e das despesas administrativas e judiciais dela decorrentes.
Conforme o relatório da auditoria, ao todo, desde 2019, houve uma redução de R$ 36,5 milhões da área da habitação de interesse social sem nenhuma justificativa. Somado esse valor à baixa execução orçamentária, o FMHIS formou um superávit que foi remetido ao Fundo de Reforma e Desenvolvimento Municipal, por força do Decreto nº 21.021/21. Os valores desvinculados do FMHIS e revertidos para o FRDM, conforme o TCE, foram de R$ 114,2 milhões em 2021 e R$ 38,3 milhões em 2022, totalizando R$ 152,5 milhões.
De acordo com os dados da execução orçamentária municipal acessados pelo TCE, os recursos do FMHIS foram destinados a pequenos empreendimentos, softwares e bônus moradia, demonstrando uma falta de planejamento de empreendimentos de grande impacto que utilizassem os recursos do fundo.
Uma reportagem do Sul21 veiculada em outubro deste ano apontou que o governo Melo fez o menor investimento em habitação popular dos últimos 20 anos na Capital. Documentos obtidos pelo repórter Fabio Canatta, com base na Lei de Acesso à Informação, registram uma soma de R$ 126 milhões investidos entre os anos de 2004 e 2024, período que contempla cinco diferentes gestões. A atual administração tem apenas dois registros no levantamento: a construção de três casas pré-fabricadas e o serviço de manutenção predial preventiva em um apartamento no bairro Jardim Leopoldina.
A reportagem apurou que as residências são moradias temporárias, enquanto a questão legal não avança. A construção dos imóveis e o cercamento do terreno foram feitos com uma verba de R$ 300 mil destinada através do Orçamento Participativo da região. A Prefeitura não informou o montante investido em cada uma das obras.
O TCE pontua ainda que a produção habitacional em Porto Alegre desde 2017 foi originária do programa Minha Casa Minha Vida, criando uma dependência de programas nacionais. Também há intenção da gestão atual de converter prédios abandonados de instituições federais para habitação, e ainda de alienar o imóvel da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV) com destinação do recurso para um projeto específico de habitação social, autorizado pela Lei Complementar nº 989/2023.
Na justificativa do projeto de lei, Melo cita o problema nacional do déficit habitacional e a movimentação das comunidades na luta pela moradia, demonstrando que conhece as demandas da população. Mesmo assim, desvinculou os recursos do FMHIS.
O texto da justificativa ainda cita que “no Orçamento Participativo 2022, a gestão comprometeu-se a utilizar recursos da venda de imóveis de propriedade do município para a construção do Residencial Barcelona”. A afirmação é incoerente com a realidade, segundo o TCE, pois havia disponibilidade de recursos do FMHIS para a concretização deste empreendimento e de outros.
O TCE constatou que o cargo de Diretor Geral do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) é ocupado pelo secretário de Habitação e Regularização Fundiária – na época, André Luiz de Mello Machado –, concomitância de cargos que pode contribuir para a perda de autonomia do órgão. O Tribunal apontou ainda que a falta de uma estrutura organizacional clara e objetiva para atingimento das metas na habitação também pode prejudicar o uso dos recursos destinados à política pública.
O baixo uso de orçamento do FMHIS, que acabou criando o superávit desviado por Melo, é uma conduta que remonta a gestões anteriores. O Plano Plurianual 2018-2021 previu o investimento de R$ 148 milhões em políticas habitacionais para os quatro anos, relacionados à meta de entregar 4 mil unidades habitacionais. Nas leis orçamentárias, o valor total previsto totalizava R$ 122 milhões, sendo R$ 54 milhões referentes a recursos do FMHIS. O TCE constatou que a execução orçamentária, entretanto, foi da ordem de R$ 6,8 milhões no período.
Já o planejamento da política de habitação para o período 2022-2025 previu investimentos de R$ 278 milhões nos quatro anos, incluindo as metas de entregar 1,12 mil unidades habitacionais e 1,62 mil bônus moradia. As leis orçamentárias anuais previam valores expressivos em 2022 e 2023 para cumprir as metas, mas não foram realizados projetos que correspondessem aos valores previstos, de acordo com o TCE.
Em 2020, os recursos oriundos do FMHIS não foram utilizados pelo município de Porto Alegre, apenas foram considerados, em relatórios de contas do governo, para a cobertura da insuficiência financeira apurada pelo TCE-RS. Naquele ano, os valores permaneceram nas contas do Demhab. Houve a transferência dos recursos em 2021, ano em que o departamento justificou suas variáveis patrimoniais pela “desvinculação do superávit financeiro de 2020 do FMHIS para o FRDM”.
Melo é responsabilizado pelo TCE por ter autorizado a desvinculação dos superávits financeiros do FMHIS sem analisar o impacto nas políticas públicas de habitação. O relatório da auditoria afirma que o prefeito ainda deixou de proporcionar a estrutura adequada para execução da política pública, pela falta de independência do Demhab em conflito com as atribuições da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária e pela continuada limitação da remessa dos recursos do FMHIS para a execução orçamentária pelo Demhab, da mesma forma que os gestores anteriores.
O diretor do Demhab, André Luiz de Mello Machado, é responsabilizado por não tomar providências para minimização dos impactos sobre a política habitacional sob sua gestão ou para advertir o prefeito quanto às consequências negativas da desvinculação de recursos impostas ao FMHIS.
Ex-prefeito, Nelson Marchezan Jr (PSDB) também é responsabilizado pelo TCE. Conforme a auditoria, o gestor limitou a remessa dos recursos do FMHIS para a execução orçamentária pelo DEMHAB. Além disso, Marchezan destinou recursos da outorga onerosa de direito construtivo para outro fundo, sem haver revisão do plano de habitação.
A desvinculação dos recursos é embasada na Emenda Constitucional nº 109/2021 que, durante a pandemia, impôs medidas de controle do crescimento das despesas obrigatórias permanentes no orçamento das três esferas. Foi autorizada, mas não obrigada, a desvinculação de dinheiro dos fundos municipais. Conforme o TCE, a decisão por esse desvio de recursos requer “análise crítica quanto ao seu impacto nas políticas públicas às quais se vinculam os fundos”.
Na auditoria, o TCE cita estudos que demonstram que a Emenda Constitucional nº 109 foi especialmente impactante sobre as camadas mais vulneráveis da sociedade, mesmo público que se viu impactado também pela retirada de recursos da política de habitação. O documento foi elaborado antes da enchente de 2024, mas chega a mencionar um levantamento do próprio Demhab estimando que mais de 20 mil famílias estavam expostas ao risco de ficarem desalojadas, no caso de catástrofes climáticas, em 142 áreas do município.
O FMHIS foi criado em 2009, junto do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, como exigência para a transferência de recursos dentro do Sistema Nacional da Habitação de Interesse Social (SNHIS). Desde então, a política municipal de habitação está desatualizada e não vem sendo monitorada quanto ao atingimento de seus objetivos conforme o TCE. A auditoria salienta que a previsão orçamentária do Departamento Municipal de Habitação tem sido reduzida ano a ano, mantendo-se longe dos patamares indicados no plano como metas de investimentos.
Ainda em 2016, sob a gestão de José Fortunati (então no PDT, atualmente no PV), os recursos disponíveis não eram adequadamente endereçados às políticas de habitação. Os valores eram remetidos “conforme a necessidade”, por pedido da diretoria do Demhab.
O Sul21 procurou a Prefeitura de Porto Alegre, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
COMENTÁRIOS